O enólogo português Miguel Ângelo Vicente Almeida que atua
na Miolo Wine Group, gigante nacional na elaboração e comercialização de vinhos
e espumantes, esteve em Santa Cruz do Sul a convite da Confraria do Sagu
palestrando sobre seu trabalho, vinícola e vinhos. O torcedor de futebol que
divide o coração entre Sport Lisboa e Benfica define-se como um “operário do
vinho”, recheando as garrafas com o resultado prático de seus conhecimentos
adquiridos no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa onde formou-se
engenheiro agroindustrial e nas diversas empresas em que já laborou.
Proprietário de uma
personalidade forte, Miguel não foge das perguntas e deixa de forma muito
transparente extravasar o que sabe e o que pensa sobre o mondovino. Um pouco sobre este perspicaz enólogo de 36 anos e que
mora no Brasil desde 2008 você poderá conhecer nesta entrevista exclusiva concedida
ao Eu, Gourmet.
Como você veio trabalhar no Brasil?
Este foi um dos acasos da
minha vida. Tudo começou em 2004, como estagiário.
Cidade que reside:
3 meses em Candiota/RS, 8
meses em Bento Gonçalves/RS e 1 mês em Lamego/Portugal
Empresas em que trabalha(ou):
Castelinho Vinhos do Douro e
Porto, Herdade da Farizoa/Alentejo, Schneider Oenologie/Alemanha,
Niepoort/Douro e Miolo Wine Group/Brasil
Quantos rótulos já elaborou?
De raiz foram quatro rótulos: Miolo
Seleção Pinot Grigio/Riesling, Quinta do Seival Alvarinho, Miolo Seleção
Tempranillo/Touriga e Sesmarias.
Além do Brasil você já desenvolveu vinhos em outros países também? Quais?
Portugal e Alemanha, fazendo
vindimas apenas.
Você é reconhecido pela sua personalidade forte. Leva esta
característica para os vinhos que elabora?
Sou muito exigente comigo e
com os que me ajudam a minha equipe, sou intenso. Não sou enólogo de camisa
branca, sou enólogo de mão pintada de antocianas, cortada das roscas RJT das
mangueiras, das dores musculares no final do dia, de dormir 5 horas por dia... Estou
dentro de todas as garrafas de vinho que faço.
É possível produzir vinhos de alta qualidade no Brasil? Como?
Claro que é possível! Se
existe vida humana no Brasil tem de existir vinho brasileiro. Sem qualidade
nada é sustentável. Sinceramente, não entendo a negação do brasileiro para com
aquilo que é seu. Nenhum vinho é igual, até no mesmo lote engarrafado existem
vinhos distantemente diferentes, a mesma garrafa degustada em taças diferentes entrega-nos
vinhos diferentes, a mesma garrafa degustada com alegria e com frustação proporciona
interpretações diferentes, também. Para um vinho de alta qualidade precisamos que
o componente natural permita um ano de uvas sadias, para que o componente
humano as colha equilibradas e delas obtenha vinhos elegantes e longevos. Obviamente
isto é possível no Brasil.
Você é um enólogo que trabalha 4 regiões produtivas brasileiras
diferentes. Quais são e como extrair o melhor de cada uma delas?
Com a experiência de já ter
vinificado mais do que um milhão de quilos de uva, são apenas duas as regiões
vitivinícolas brasileiras onde trabalhei e trabalho, Serra e Campanha Gaúchas.
Trabalhei apenas duas semanas no Vale do São Francisco, mas com duas semanas
ninguém conhece nada, nem ninguém, eu já fiz 18 vindimas e não sei nada. Na
Serra Gaúcha os vinhedos em meia-encosta são a melhor opção, os solos ricos e
heterogêneos proporcionam vinhos complexos, de identidade bem definida e quando
nos verões existe déficit hídrico conseguimos resultados impares até nas
variedades tintas de ciclo longo. A Campanha Gaúcha em suma é uma região mais
homogênea, em relevo, em solos, em clima. Os vinhos daqui são sempre regulares,
muito frutados, macios e equilibrados.
O Brasil - e em especial o RS - tem ainda como melhorar seus vinhos?
Qual seria o caminho para isso?
Precisamos mudar para melhor,
sempre. O Brasil e em especial o Rio Grande do Sul tem cerca de 10 anos
produzindo vinhos contemporâneos de qualidade, o boom das espaldeiras simples, da opção por outras castas Vitis Vinífera, que não as mais
plantadas no mundo, aconteceu de 2000 a 2004. O caminho é longo e como sempre,
no início, os erros, os excessos, fazem parte do aprendizado, do processo de
criação da identidade. Em qual região vitivinícola mundial não aconteceram
erros e excessos? O vinho brasileiro que me entusiasma entrega-me acidez,
acidez que reforça a tanicidade, confiando ao vinho o seu parceiro ideal, a
comida. O respeito pela origem faz obter vinhos brasileiros frescos e angulosos.
Ainda há algum local promissor no Brasil ideal para produção de vinhos
e ainda pouco explorado?
Eu gosto muito da Campanha
Gaúcha e da região dos altos planaltos gaúchos, Campos de Cima da Serra. Nos
Campos de Cima da Serra, quiçá o mesmo resultado se obtenha no Planalto
Catarinense, é fantástico o desempenho atingido pelas uvas brancas, os Pinot
Noir são exímios e o Merlot, vindima após vindima, origina vinhos que muito me
surpreendem. Mas tudo no vinho moderno brasileiro é muito novo, pela colossal
dimensão geográfica, a possibilidade de lugares promissores é imensa e todas as
poucas regiões vitivinícolas brasileiras estão inexploradas. Não conheço, mas
ouvi falar da Serra do Pirineus em Goiás, Chapada Diamantina na Bahia, Serra da
Mantiqueira em São Paulo...
Fale da produção da casta Tannat no RS. É uma uva a se apostar? Quais
as diferenças no vinho Tannat uruguaio e brasileiro?
Adoro trabalhar com as uvas,
os mostos e os vinhos Tannat. Em suma, é uma casta muita exagerada, não é
tintureira, mas entrega muita cor aos vinhos, é muito ácida, é muito tânica. A
Tannat proporciona facilmente vinhos de guarda. Os vinhos Tannat tem um elevado
poder redutivo, para serem frutados e macios exigem altos consumos de oxigénio,
não foi à toa que a micro-oxigenação foi inventada em Madiran, em cima de
vinhos Tannat. Diferenças do Tannat brasileiro e uruguaio, todas. Não gosto de
comparar origens e interpretações pessoais. Cada lugar é único e cada pessoa é
diferente.
Você é adepto a passagem de tintos por barrica? Fale à respeito.
A barrica surgiu no vinho como
forma de transporte, chegando-se à conclusão que o vinho recebido sempre era
melhor do que o vinho enviado. A madeira é um material poroso e naturalmente
aromatizado, quanto mais nova, mais porosa e mais aromática. Portanto, quando
decidimos colocar um vinho na barrica sabemos que vamos mudar a sua história,
as cores serão estabilizadas, os aromas incrementados e complexados e os gostos
estruturados e amaciados (os elagitaninos da madeira atuam como catalizadores
da polimerização tânica e os polissacarídeos da madeira contribuem para o aumento
de volume em boca). Se tiver de escolher barricas, escolho barricas muito
usadas e muito bem higienizadas.
Numa safra ruim, de que forma o enólogo consegue extrair o máximo de
qualidade e elaborar bons vinhos?
Vivendo perto da vinha e dormindo
dentro da adega. Sempre as minhas vindimas na Quinta do Seival duram três
meses, meses de total abstinência do mundo ou da forma que as pessoas normais o
vivem. E isto para todas as vindimas excelentes, boas, médias e ruins. Os
momentos cruciais do vinho são a colheita e a vinificação.
O que você acha sobre os vinhos orgânicos e biodinâmicos? É uma
tendência?
O vinho é um ato humano, sem
intervenção/supervisão humana ele termina, de forma natural, em vinagre.
Portanto, a pergunta deve ser: agricultura orgânica ou agricultura biodinâmica
ou práticas agrícolas com responsabilidade ambiental em produção integrada?
Mais do que tendências, são certezas que faltam tornarem-se absolutas. Mas
cuidado, existe por aí muito embuste, presunção e hipocrisia.
Qual sua uva preferida?
Touriga Nacional.
Qual o melhor vinho que você já degustou?
Quinta do Seival Castas
Portuguesas 2006.
A tecnologia faz diferença na produção de vinhos? Onde ela aparece?
Faz,
particularmente nos vinhos brancos.
No Uruguai temos o Tannat, na Argentina o Malbec, no Chile o Cabernet
Sauvignon. Qual a casta tinta que você considera que poderá ser o cartão de
visitas do Brasil?
O
Brasil começa já no hemisfério norte e ocupa um pouco mais de um terço das
latitudes do hemisfério sul é impossível reduzir tudo isto a uma casta. Por
exemplo, a Miolo tem vinhas plantadas em três biomas brasileiros: na caatinga,
a melhor performance é a Syrah, na Mata Atlântica é a Merlot e no Pampa é a
Tannat.
De que modo a sua formação profissional portuguesa influencia a
elaboração de vinhos brasileiros?
Quiçá somente um grau maior de
comprometimento e uma vontade telúrica de sempre querer e fazer o melhor.
Intensidade.
Qual a sua opinião sobre a posição de alguns produtores brasileiros
importarem vinhos de outra nacionalidade e distribuir por aqui? Não é um contra
senso?
Nós, Grupo Miolo, fazemos
isso. Não tenho objeções de consciência. Luto pelo consumo de vinho brasileiro
por parte dos brasileiros, levantando sempre bem alta esta bandeira.
Qual o patamar em que a Miolo Wine Group se encontra hoje no mercado
sul-americano?
Em
2013, segundo relatório da Euromonitor Internacional, o ranking mundial de
grupos vitivinícolas foi composto por: E&J Gallo Winery (USA) com 777
milhões de litros de vinho produzidos, Constellation Brands (USA) com 589
milhões de litros, The Wine Group (USA) com 456 milhões de litros, Concha Y
Toro (Chile) com 282 milhões de litros, Grupo Peñaflor (Argentina) com 278
milhões de litros, Pernod Ricard (França) com 277 milhões de litros, Treasury
Wine Estates (Austrália) com 274 milhões de litros, Castel Group (França) com
270 milhões de litros, Accolade Wines (Austrália) com 270 milhões de litros e Caviro
(Itália) com 160 milhões de litros. A Sogrape maior grupo vitivinícola
português produziu 78 milhões de garrafas por ano. A Miolo Wine Group produz 10
milhões de garrafas por ano. Ouço de muitos consumidores e formadores de
opinião comentários de que a Miolo é uma empresa grande, não posso concordar,
pois ao mesmo tempo em que produzimos milhões de litros, colocamos o mesmo
afinco e a mesma energia em vinhos de volume pequeno como o Testardi Syrah, o
Vinhas Velhas Tannat, o Sesmarias, o Alvarinho, o projeto Miolo Winemaker, por
exemplo.
Qual o vinho que você elaborou que mais orgulho lhe deu?
Sinto
orgulho por todos os vinhos que elaborei, elaboro e elaborarei nesta grande
empresa.
Por que Argentina e Chile produzem vinhos médios de tão boa qualidade e
preço e o que as vinícolas brasileiras podem fazer para alcançarem este
patamar?
A qualidade é fruto da
condição natural, o preço resulta dos baixos custos de produção e baixa carga
tributária. No Chile e na Argentina é possível produzir elevados rendimentos de
uva por hectare, mais de 15 ton/ha, sem prejuízo da sanidade e com medianos
graus de maturação. O rendimento médio das nossas vinhas dificilmente passa as
9 ton/ha. Sobre preços, dois terços dos vinhos produzidos pelo Grupo Miolo são
vendidos abaixo dos R$30, com a marca Almadén produzimos 4 milhões de garrafas
a R$15, em média.
Prato preferido?
Todos os de minha mãe.
Restaurante preferido?
Pizza Entre Vinhos, no Vale
dos Vinhedos, pela pizza e pelo seu componente humano, Altemir Pessali e a sua
equipe.
Uma vinícola - fora a que você trabalha - que admira, seja no Brasil ou
no mundo?
Yealands Estate, na Nova
Zelândia.
Personalidade admirada na área do vinho?
Sem dúvida e sem interesse, Adriano
Miolo.
Deixe uma dica para quem está começando a se interessar em beber
vinhos:
Os vinhos são bebidas ácidas e
aos tintos acresce o amargor. A primeira experiência pode ser desagradável.
Portanto, permita-se provar mais vinhos e amplie a sua zona de conforto, saia dos
lugares comuns, como os vinhos fáceis e adocicados, normalmente oriundos de regiões
quentes. Mas como isto dos vinhos é uma questão de gosto. Portanto, que nos
permitamos à evolução do gosto.
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